terça-feira, 17 de abril de 2007

Luz [3]

Sentada na escada, ao lado do pombal, confidencia a Bia a falta que Francisco lhe faz.
- Se vais começar com essas coisas, abalo já daqui!
- Não... estava só a pensar alto. A verdade é que não consigo esquecê-lo, percebes?
- Ninguém te pede que o esqueças. Só queremos que sigas com a tua vida.
- Qual vida?...
- Bom! Começamos?...
- ...
- Anda! Vamos à cooperativa que eu preciso aviar-me.
Luz acompanha Bia mas não ouve uma palavra do que ela diz. E se Bia fala!... Já não sabe o que fazer para distrair Luz. Sente que o tempo da amiga corre ao acaso. Já não lhe pertence. Francisco levou consigo os desejos realizáveis que ela, ainda, podia ter. De pequenas e de grandes coisas. Só a imaginação de Luz não partiu com ele. Depois de uma vida inteira a versificar tudo o que de bom, ou mau, lhe acontecia, os poemas continuam a sair-lhe sem sequer se dar conta disso. Escreve-os mas já não os relê. Agora são diferentes. Traduzem uma dor que não quer sentir. Uma tristeza que não consegue esconder. Uma angústia permanente que quase a sufoca.

O teu rosto.
O meu olhar,
afogado em lágrimas sentidas.
A tua voz.
O meu grito,
insonoro e esmagado.
Os teus sentimentos vãos.
As minhas esperanças perdidas.


...


Bia deixa-se dormir. Já o sol vai alto quando se levanta.
- Bolas! A Luz já deve ter passado para ir buscar o pão.
Arranja-se rapidamente e sai com a mesma pressa de sempre. Não anda, corre. Mesmo quando tem vagar. A urgência, desta vez, acaba no último degrau que separa o seu terraço do dela. A casa absolutamente fechada de Luz apresenta-se a Bia como um mau presságio. Corre a buscar a chave e entra em casa da amiga com o coração na boca. Bia não precisa de ler os bilhetes espalhados pela casa para perceber o que está a acontecer. Em cima da cama, num aprumo imaculado, a mortalha. Desvairada ruma a casa de Manel Joaquim e, num só soluço, implora-lhe que vá ao Palacete buscar Luz.

Separados por um infortúnio, depois de uma vida inteira juntos, Luz e Francisco reencontram-se no dia do segundo aniversário da partida dele. No mesmo local.
Francisco partiu com 85 anos, Luz com 79.


Fim

4 comentários:

Capitão-Mor disse...

Mais uma blogsérie!? Esta narrativa remeteu-me para paragens alentejanas...+

Unknown disse...

Luz da Luz reacendeu
Tão perto e tão distante
Lá muito alto no Céu
Como estrela cintilante

Prof disse...

Lembrei-me de Pedro e Inês de Castro, de Romeu e Julieta... desses amores que têm a qualidade de serem eternos. Tenho inveja de quem ama assim!
Beijinhos!

APC disse...

Que triste!
Que bonito!

:-)