“O meu pai morreu na Guiné”. Ali, na escola do Alfeite, não era invulgar ter um amigo órfão de pai. A morte era, no entanto, uma coisa que acontecia longe, no Ultramar - fosse lá isso onde fosse… Mas ali, no recreio da escola, tentava-se, de todas as formas, encurtar a distância que separava as crianças da guerra. Vêm-lhe à memória canções antigas:
Que levas na garrafinha?
Que levas no alguidar?
Saudades do meu Zequinha,
Que vai para a guerra ser militar.
Que levas na garrafinha?
Que levas no garrafão?
Saudades do meu Zequinha,
Que vai para a guerra ser capitão.
Que levas na garrafinha?
Que levas que tão bem cheira?
Saudades do meu Zequinha,
Que vai para a guerra segunda-feira.
O pai de Rui voltou, felizmente, inteiro e sem aparentes sequelas. Assim, Rui só conheceu a dor da morte quando, aos doze anos, esta lhe levou a melhor amiga, com um cancro nos ovários. Rui não sabia o que eram os ovários mas teve, nesse dia 1 de Junho, a certeza de que eram coisas muito más. Passou a atribuir à morte o rosto dos ovários - fossem lá isso o que quer que fossem. A amiga era, por ventura, a melhor pessoa que Rui conhecia. E também a mais bonita. Ela tinha um irmão no Ultramar. Costumava escrever-lhe aerogramas. Todos os meses Cristina esperava, impaciente, pelo carteiro, o portador de fantásticas aventuras e mimos imensos. Os carinhos expressos, à pressa, no aerograma eram o motivo da ciumeira desmesurada sentida pelo Rui. Sentada na escada de acesso ao prédio onde residia, rodeada pelos amigos que com ela brincavam na rua, Cristina lia pausadamente, saboreando cada palavra escrita no aerograma. Enquanto a ouvia Rui vagueava pelos matos de África de camuflado vestido e arma ao ombro. Imaginava-se a escrever-lhe cartas de Amor e a aparecer na televisão, pelo Natal, a desejar-lhe Bom Natal e Próspero Ano Novo - significasse Próspero o que quer que significasse… Ah, como ele detestava aquelas tertúlias “aerogramicas”! Cristina, por sua vez, adorava a curiosidade que o irmão despertava nas amigas, o interesse pela guerra manifestado nos rapazes e, sobretudo, a atenção privilegiada uma vez por mês. Rui gostava de ver Cristina bem, mas quando era ele o causador desse estado. Quando a morte veio buscar Cristina deixou o coração de Rui envenenado de ódio. Não lhe viu o rosto. Não o deixaram ver Cristina morta. Veio-lhe à memória outra canção antiga. Uma que deixava sempre os olhos dela pejados de lágrimas:
Que fazes aí criança,
Sentada nesse penedo?
Quero ir ao cemitério,
Mas sozinha tenho medo.
Tu já não tens pai nem mãe,
Criança tão pequenina?
Eu não tenho pai nem mãe,
Vivo neste mundo sozinha.
Com a chegada do 25 de Abril e, com ele, o fim da guerra, Rui achou que a morte não mais o visitaria. Quando completou 14 anos esta veio buscar-lhe o avô. O avô partiu sem que dele se pudesse despedir condignamente. Não viu o rosto da morte prematura de Cristina. Não viu o rosto da morte natural do avô. Nunca vira o rosto da morte. Até hoje. Hoje viu o rosto da morte decadente, da velhice abandonada, da doença não assistida. A imagem da morte, de cujo cenário sempre escapou, é-lhe apresentada não como um encontro natural e espontâneo com a vida, ou com o fim desta, mas como o pináculo do horror. Lembrou-se de África. Lembrou-se de Cristina. Passados 30 anos o coração encheu-se novamente de ódio. Fez uma jura. Quando morrer quero estar tranquilo - seja lá isso o que for…
(ao meu padrinho)